Dizer um poema é orar; todos os poetas são abençoados por Deus. (adapt. de Rosa Lobato de Faria)
domingo, 31 de maio de 2009
K
Hoje
Quero soprar para longe a minha fome de amanhã. Quero espreitar por cima dos ombros do hoje. Quero não ser mais escravo do dia incerto. Alongo o tempo, fixo o calendário, (o relógio); contemplo o hoje fluindo pelas minhas margens, espreguiçando-se entre dois ramos de memória. Espraia-se ainda mais, e eu vou ficando dolente, estendido, mirando o hoje, assim, sem mais ou menos…
Podemos calar todas as armas, silenciar revoltas, mas as palavras sempre ficarão no nosso peito. Podemos despejar nosso olhar, noutros olhos, fechar o que sentimos, mas as palavras, essas, ficarão no nosso peito. Podemos até fugir, mudar de terra, de afectos de nome, mas as palavras ficarão no nosso peito, vivas. Acordam-se os homens, acorda-se o tempo, acorda-se a vida, porque há palavras que em si trazem sementes de revolta, de mudança, de comunhão.
Onde estará o meu lápis? Aquele que me pensava, me traçava as linhas. Fora o tempo dos receios, dos trilhos sem caminho. As emoções bailavam, entre o tudo e o nada.
Nada mais. Ausência. caminhei entre as tubas, violinos, violetas, trompetes, uma orquestra absorta em si menor. Onde estaria o meu lápis? Aquele que delineara com Braque, satirizara com Eça, e me deixara esperançoso de uma arte que me transluz. Agora estou mirando o tecto, o infinito pra lá da janela. O lápis da minha esperança…
Caminho sob mim próprio, há tenazes que me abrangem subtil, docemente. Entre as palmeiras fugas de brisa, de poeiras de cor fosca. A terra afunda-me, o mar ocre, desvenda-se em laivos de vapor, enquanto a vida se espelha. Houve dor queimando as secas matrizes. Balançou o pesar entre as silvas. Os montes anexos, os juncais, trepavam-se e soldavam os cumes. Fiquei estático. sabia que a urze cercaria os meus caminhos, qual serpente bífida, tricéfala. Bastei-me, Apenas o gosto da vida, em paisagem morta, espúria.
Endureci a crosta do solo; salguei o rosto, o sol empinado, costas geladas daquele sangue brutal; entre as foices de trigo (ouro faísca, ouro cego) malham insectos; vidas resvalam socalcos abaixo, perdido o vinho, o pão, a semente. Restam duas enxadas, entre dois passos de horizonte, resta um homem, uma mulher, uma volta na eira, uma ilha de raiva,
Podias ficar com uma imagem; a luz das palavras, dos sons trocam o signo. Lugar onde, de onde, sujeito sem objecto. A partida nem saiu do molhe, a figura, a imagem, o retrato, descansaram sobre o aparador, escondidas em memórias empoeiradas num amanhã insone.
"[...] Apesar de tudo o que se passa à nossa volta, sou optimista até ao fim. Não digo como Kant que o Bem sairá vitorioso no outro mundo. O Bem é uma vitória que se alcança todos os dias. Até pode ser que o Mal seja mais fraco do que imaginamos. À nossa frente está uma prova indelével: se a vitória não estivesse sempre do lado do Bem, como é que hordas de massas humanas teriam enfrentado monstros e insectos, desastres naturais, medo e egoísmo, para crescerem e se multiplicarem? Não teriam sido capazes de formar nações, de se excederem em criatividade e invenção, de conquistar o espaço e de declarar os direitos humanos. A verdade é que o Mal é muito mais barulhento e tumultuoso, e que o homem se lembra mais da dor do que do prazer."
Naguib Mahfouz, romancista egípcio, na mensagem que enviou, em 1988, à Academia Real Sueca a agradecer o Prémio Nobel da Literatura, o único a ser atribuído até à data, a um escritor árabe
(cit. em "Dicionário do Islão", Margarida Lopes, ed. Notícias)