Tens a virtude da queda, a vertigem; sabes os caminhos, resvalas pelo mais baldio, sempre; tens nas mãos inscrito o germe da catástrofe, do terror... (...) traças, os trilhos da vida, tão só; quem entende?
Uma velha lá fora, ri desbragada, vinho na mão, os dentes vazios, os olhos mortiços. O seu riso tão desdentado, tão louco, lembra canções de marujos, entre cordames, salpicos, abraços… Mas a velha está só. Olho-a pela janela, um rir demente, desafio aos homens, a Deus, ao mundo todo.
Nos seus andrajos toda se veste de cor, num luto mais tolo do que o pacote de vinho que segura como um triunfo, esquecido, entre caixotes, arrumadores, no meio do aparato, dos faustos, das régias sobras, que deslizam, sob nós; secretas esperanças de mágoas em silêncio.
"[...] Apesar de tudo o que se passa à nossa volta, sou optimista até ao fim. Não digo como Kant que o Bem sairá vitorioso no outro mundo. O Bem é uma vitória que se alcança todos os dias. Até pode ser que o Mal seja mais fraco do que imaginamos. À nossa frente está uma prova indelével: se a vitória não estivesse sempre do lado do Bem, como é que hordas de massas humanas teriam enfrentado monstros e insectos, desastres naturais, medo e egoísmo, para crescerem e se multiplicarem? Não teriam sido capazes de formar nações, de se excederem em criatividade e invenção, de conquistar o espaço e de declarar os direitos humanos. A verdade é que o Mal é muito mais barulhento e tumultuoso, e que o homem se lembra mais da dor do que do prazer."
Naguib Mahfouz, romancista egípcio, na mensagem que enviou, em 1988, à Academia Real Sueca a agradecer o Prémio Nobel da Literatura, o único a ser atribuído até à data, a um escritor árabe
(cit. em "Dicionário do Islão", Margarida Lopes, ed. Notícias)