Roo o sonho, na medida certa, onde me dói. Escuto, ouço, letras que se despenham, calotas doidas num convés. Houve dois, três saltos que me soltaram no meio das searas, vazias de pão, tão louras que me levaram a um Norte que me é vedado, ainda. Uma noite, entre sonhos, abrir-se-ão portas: Estocolmo/Oslo/Copenhaga/Helsínquia e o Norte abater-se-á, noite solar, longe, longe...
E as capitais esguias, furtivas, levarão os meus passos, os meus sonhos incertos onde já nada dói, onde já nada conta...
Vejo que esqueceste o tempo, a rude espada que te tolheu, o abraço que nunca deste. Vejo que esqueceste as nuvens, as esperanças furtivas, que te trouxeram de bandeja. Vejo que esqueceste as mãos, aquelas que o sopro aqueceu, entre tormentos excessivos.
Sim, vejo o esquecimento, as luas esquivas, a guarda que baixaste, o teu sorriso demente; há pregas e rugas na tua fala, e até as palavras esbarram no teu esgar longínquo; sinto o tremor do que pensas, o frio que te agita, os sonhos em que recusas empinar-te. Os apuros dos teus caminhos, as razias de uma memória que obliteras a cada passo, trazem-te de volta à praia: Omaha Beach...
Já a brisa se despenhou. Cristais esguios, línguas e madeixas de troncos ensimesmados, arcas de tesouros vazias sem pedras, nem nada. Velhos búzios encaracolam sopros de marés que nunca houve nem na mais mítica das quimeras. As marés do mare nostrum trazem relíquias em forma de ânfora, mas elípticas, parabólicas, talvez velhas equações já esquecidas. O volume do cone quase dá os litros da mistura, assim detida. Um quarto de rajada leva os restos de brisa, melenas navegando. Com tão pouco, miríades de coisa nenhuma afastam-se de rojo, entre dois esgares duma hárpia esvoaçante.
Inundou-me o sonho, esta noite. deslizou por meus lábios, assaltou o meu esquecimento. As tílias assombravam as avenidas, loucas flores tintavam-se trepando os muros, os portões. Cavalgava o sonho, ainda levando o torpor, a atracção do amargo, saboreava minha boca. O gosto olvidava as sombras da antemanhã.
(imagem: detalhe de uma pintura de Monet retirada da net)
"[...] Apesar de tudo o que se passa à nossa volta, sou optimista até ao fim. Não digo como Kant que o Bem sairá vitorioso no outro mundo. O Bem é uma vitória que se alcança todos os dias. Até pode ser que o Mal seja mais fraco do que imaginamos. À nossa frente está uma prova indelével: se a vitória não estivesse sempre do lado do Bem, como é que hordas de massas humanas teriam enfrentado monstros e insectos, desastres naturais, medo e egoísmo, para crescerem e se multiplicarem? Não teriam sido capazes de formar nações, de se excederem em criatividade e invenção, de conquistar o espaço e de declarar os direitos humanos. A verdade é que o Mal é muito mais barulhento e tumultuoso, e que o homem se lembra mais da dor do que do prazer."
Naguib Mahfouz, romancista egípcio, na mensagem que enviou, em 1988, à Academia Real Sueca a agradecer o Prémio Nobel da Literatura, o único a ser atribuído até à data, a um escritor árabe
(cit. em "Dicionário do Islão", Margarida Lopes, ed. Notícias)